Crítica | Medida Provisória


Ultimamente não é muito difícil ver no Brasil coisas que pensaríamos ser ficção, mas trata-se da realidade. Em Medida Provisória isso nem é latente e, mesmo sendo ficção, a sensação que temos ao assistir o longa é de que tudo que ele retrata poderia acontecer, infelizmente, hoje mesmo considerando os rumos que o País tomou nos últimos anos. O longa dirigido por Lázaro Ramos que estreia nesta quinta-feira (14), nos cinemas e retrata um futuro distópico próximo no Brasil onde um governo autoritário ordena através de uma MP (Medida Provisória) que os cidadãos descendentes de africanos sejam mandados de volta para a África. O que poderia ser uma política de resgate histórico-cultural a primeira vista, levando até mesmo alguns cidadãos a se voluntariarem ao programa, passa a ser show de horrores levando caos às ruas, protestos e criando um movimento de resistência nos chamados "Afrobunkers" e também levando problemas para países do continente africano que passam a sofrer com uma crise imigratória. Não são poucas as referências ao Brasil real, como a data da Lei Áurea, 13 de maio, e o ano em que ela ocorreu (1888). 

A brilhante atuação dos protagonistas nos leva a sentir certa angústia e, aos mais sensíveis, a se emocionarem quando são tratados temas que nos permeiam, principalmente pessoas negras, no dia a dia. Antonio (Alfred Enoch) e Capitú (Taís Araújo) formam um casal que conquistaram espaço numa sociedade desigual, mas mesmo assim não passam despercebidos pelo racismo crônico e escancarado no filme após encorajamento do governo. Novamente, não muito diferente do Brasil de hoje que vivemos nos últimos anos para cá. Sem muitos momentos de risos espontâneos pelo decorrer do filme, o alívio cômico fica a cargo de André (Seu Jorge), jornalista que não costuma levar desaforo para casa. O diretor Lázaro Ramos e os responsáveis pelo elenco foram perspicazes nas escolhas de Renata Sorrah, nossa eterna Nazaré Tedesco, e Adriana Esteves, que deu vida à Carminha há 10 anos em "Avenida Brasil". As personagens de ambas são aqui igualmente repudiáveis, porém, sem deixar nenhum sentimento de empatia pelo telespectador (se você criou, nem gostaríamos de comentar).

Imagem: Reprodução / Elo Company

O diretor Lázaro Ramos pega uma antiga ameaça racista e se pergunta como seria na vida real neste thriller brasileiro sobre um governo forçando seus cidadãos negros a voltar para a África. Antônio, é um advogado de direitos civis, que processa o governo brasileiro por indenizações monetárias a cidadãos negros, tentando responsabilizar o estado por sua história violenta contra os escravos africanos trazidos para a terra séculos atrás e seus descendentes que ainda luta até hoje. O governo retalia com a iniciativa “Return Yourself”, pagando para enviar todos os negros brasileiros para diferentes países da África contra a vontade deles. A distopia proposta em Medida Provisória, que foi co-escrita por Ramos, Lusa Silvestre, Aldri Anunciação e Elísio Lopes Jr, é profundamente intrigante. É de se perguntar como Antônio chegou onde chegou, processando o governo aparentemente por conta própria em um tribunal com poucos sinais de indignação. Mais tarde, o cenário do filme torna-se um impasse entre Antônio e o estado, Antônio “seguro” em seu apartamento baseado na proteção de linear. Com o governo brasileiro sendo tão militarizado e autoritário como é, é difícil acreditar que eles não ignorariam a lei e invadiram sua casa de qualquer maneira.

Medida Provisória joga na cara o quão absurdo é mandar descendentes de africanos para a África. O que mais assusta não é vermos como seria essa política potencialmente, na prática, mas sim enxergar que, incompreensivelmente, isso não está distante de nós hoje e poderia sim ocorrer a depender das demandas e escolhas dos representantes políticos. O fato do filme chegar em um momento crucial para os brasileiros, em pleno ano eleitoral após uma eleição presidencial completamente polarizada com show de horrores e desinformações que segue para o mesmo cenário, deveria servir de alerta a todos sobre os caminhos que o Brasil vêm sendo conduzido. E começar a partir de agora a buscar alternativas de reparo e reconstrução do que nos foi destruído nos últimos anos e ao longo dos séculos, antes que o pior possa infelizmente acontecer. O longa conta ainda com uma trilha sonora digna e altamente contemplativa, com vozes marcantes como a da digníssima e memorável Elza Soares. Confira o trailer abaixo e lembre-se: se for ir ao cinema, use uma boa máscara como as do tipo PFF2 ou N95 e busque manter distanciamento, se possível.

Por Caio Santana e Mateus Tifoski
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